E se eu fosse pensar apenas em mim a vida inteira ao ponto de não compartilhar um amor, seria egoísta?
E se isso fosse apenas uma forma de defesa, pois de tanto ouvir e ver as pessoas lacrimejarem cunhei meu mundo bem distante de todos, estaria fugindo da felicidade?
E se eu tivesse nascido em outro mês que não fosse Maio, numa sexta-feira, que é o meu dia preferido da semana. E se fosse de madrugada e a lua brilhasse branca no céu de uma pequena cidade do interior aonde eu viria ao mundo... E se meu nome fosse Francisco, ou Rômulo, ou José? Ah, bastaria um nome para ser feliz?
E se eu nunca precisasse sair de lá, do meu torrão natal. Se lá tivesse tudo que eu sonhei para ser feliz? Um divã, para me recostar e falar de mim, Um vinho, nas noites frias, quando janeiro acabasse, quando o verão partisse para o norte e o inverno viesse fazer doer minhas juntas. E o vento ventasse como se estivesse a sonhar ou a cismar sobre algo que estivesse por acontecer.
E se minha vida se resumisse ao brilho frágil do cristal, ao morango com chocolate que aprendi a gostar, à musica do violão, da flauta, aos livros de Neruda, ao cheiro de qualquer saudade, pois saudades tem cheiro, ao cheiro diurno do jasmim, as cantigas de vovô, aos peixinhos azuis de aquários, à água doce e fria, do riacho frio...
E se, em grande devaneio, eu fosse ver o Chico Buarque, um dia, e ouvisse sua voz, a me contar histórias de sua vida passada, de sua fama, de seu sucesso com as garotas, quando era um rapazinho bonito, com seu violão debaixo do braço. E se ele me contasse histórias do tempo dos festivais e eu me enternecesse porque ele, mesmo homem, é bonito de se olhar. E ele cantasse sua saudade do Rio, porque no fundo ele também teria saudade de tudo o que viveu.
E se Cazuza não tivesse morrido e se o mundo não fosse tão duro com os diferentes, de todos os tipos. E se Renato Russo não tivesse ido cantar uma canção para o senhor. E se os dois fossem felizes nesse mundo tal como ele se apresenta?
E se eu escrevesse aquele livro que volta e meia me vem em sonhos. E se ele fosse um grande livro, como 'Cem Anos de Solidão', de Garcia Marques. E ficasse para sempre machucando quem o lesse, mas que, ainda assim, as pessoas estivessem sempre o lendo. E se eu fizesse uma canção tão linda e tão doce como "Peter Garst", do Caetano. E se ela fosse mais bonita ainda que todas as canções que gosto.
E se a minha vida toda fosse apenas uma tarde sem sobressaltos, uma tarde de sol brando, uma tarde de silencio e de serenidade. E se toda a razão de viver estivesse ali, naquela tarde preguiçosa. Onde os desejos se realizassem com a magia pura das crianças: Serei feliz? Sim ou não? Terei sucesso na vida? Muito amor no meu destino? No silencio da tarde a resposta viria em forma de sinal: uma porta bate, alguém assobia, um cachorro late.
LEANDRO TAVARES - BAERDAL
Cálice sem fim
e se... maaas...sempre tem um "mas"!
ResponderExcluir=)